INÊS MOTA ANTUNES: «M, de Mobilidade… mas só para alguns! O interior do concelho grita por soluções»
Não existem transportes públicos que liguem São Domingos de Carmões a Torres Vedras fora do período escolar. E mesmo durante o período letivo, as ligações resumem-se aos horários das 6h40, 7h24 e 14h08 - num percurso de apenas 15 quilómetros que demora cerca de 40 minutos a ser feito. Curiosamente, o mesmo tempo que se leva entre Torres Vedras e Lisboa. E o regresso? Segundo o call center da Boa Viagem, “talvez tenha de ir à Merceana e fazer transbordo”. Talvez. Ou talvez não - pesquisei, e essa opção não existe, em nenhuma altura do ano.

Perante este cenário, parece-me que a resposta mais recente dos responsáveis políticos foi o anúncio de uma medida de transporte solidário a pedido, que serve as freguesias de Carvoeira e Carmões e Dois Portos e Runa. Um serviço que, embora pareça bem-intencionado, coloca o ónus da mobilidade nos próprios utilizadores, exigindo marcação prévia e não respondendo às necessidades reais de quem vive nas zonas mais isoladas do concelho. Não o digo só eu - dizem-no também diversos estudos e especialistas em mobilidade.
O transporte a pedido, embora útil em certos contextos, não substitui uma rede regular e previsível de transportes públicos. Segundo a Agência Europeia do Ambiente (2022), a previsibilidade e frequência são fatores-chave para garantir o uso efetivo do transporte público em áreas periféricas, especialmente entre idosos, jovens e populações com menor literacia.
O interior do concelho de Torres Vedras - neste artigo, com especial destaque para a freguesia de Carvoeira e Carmões, mas com consciência de que é uma questão quase transversal - continua a ser tratado como uma periferia esquecida e, aparentemente, cada vez mais distante. A antiga freguesia de São Domingos de Carmões, composta por localidades como Corujeira, Setinheira, Casais Tojais, Braçal, Freiria, Alfeiria, Carrasqueira e Casal Sobrigal, está hoje isolada do próprio concelho.
A reorganização administrativa de 2013, que a fundiu com a antiga freguesia de Carvoeira, podia ter trazido algumas melhorias em termos de coesão territorial, mas tem acontecido o contrário: a ligação que este território mantém com Torres Vedras é quase meramente administrativa. Muitos residentes estudam, trabalham ou fazem as suas compras no concelho vizinho de Sobral de Monte Agraço. Este “desvio” forçado não é apenas um detalhe: segundo o Instituto da Mobilidade e dos Transportes a falta de interconectividade entre zonas rurais e os centros urbanos é um dos principais fatores de exclusão social e económica nas zonas de baixa densidade.
Já na localidade de A-da-Rainha, a realidade não é melhor. Os autocarros são raros e os horários, muitas vezes, inexistentes fora do período escolar. Outro exemplo caricato: se alguém da Serra de São Julião quiser usar o novo passe M para ir aproveitar um dia de praia em Santa Cruz, em dias úteis, até consegue fazê-lo, mas pode demorar cerca de 1h30 a lá chegar. Já aos fins-de-semana, essa é uma missão impossível para qualquer habitante desta freguesia, não existe um único autocarro a fazer a ligação entre a freguesia e Torres Vedras. Mobilidade? Sim, mas só para alguns.
E se falarmos de mobilidade pedonal, a situação também é preocupante. Ao longo dos anos, fecham-se caminhos vicinais sem serem criadas alternativas, e deslocar-se a pé entre localidades da freguesia, ou até dentro de algumas localidades, é um risco - ou um desafio, para quem gosta de aventuras. A freguesia é atravessada pela EN9 e limitada a sudeste pela EN115, mas nenhuma destas vias tem passeios contínuos entre localidades, como por exemplo, Corujeira e São Domingos de Carmões ou Palear/Carreiras e Carvoeira. No Curvel, até construíram passeios... mas metade de cada lado da estrada. Não comunicam entre si. Um verdadeiro monumento à falta de planeamento.
A EN9 - recentemente asfaltada, mas sem a devida (e prometida!) requalificação entre o cruzamento de Runa e a Merceana - continua, no território da freguesia de Carvoeira e Carmões, sem zonas dedicadas para a tomada e largada de passageiros, sem medidas de acalmia de tráfego em cruzamentos perigosos - como Carreiras, Palear, Aldeia N.ª Sr.ª da Glória e Zibreira - e sem atravessamentos pedonais em pontos críticos: Zibreira (onde se fazem transbordos e, em período escolar, crianças atravessam a estrada, sem qualquer vigilância), Aldeia N.ª Sr.ª da Glória, Casal Estevainha, Palear, Carreiras, entrada da Carvoeira. Isto impossibilita coisas tão simples como uma ida segura ao cemitério da Carvoeira, ao banco ou aos serviços da Junta de Freguesia.
A OCDE (2020) já alertou para que “a mobilidade rural deve ser planeada como um direito social e um motor de inclusão”. Ora, olhar para estas zonas, e para muitas outras do nosso concelho, é um verdadeiro atentado à inclusão e uma falha grave de planeamento.
Cabe às autarquias, representadas na autoridade de transportes, obrigar à criação de uma rede transportes que sirva de forma mais igualitária todos os habitantes. Cabe-lhes também ter a capacidade de sensibilizar e pressionar as entidades responsáveis para a resolução de falhas graves de mobilidade que impactam negativamente na vida das pessoas.
A população quer soluções estruturadas, contínuas, humanas - não respostas-penso rápido. Não quer medidas "solidárias" que funcionam como um favor, mas redes de mobilidade que tratem todos por igual, independentemente do código postal.
A mobilidade não é caridade. É coesão territorial. É acesso a direitos. É cidadania.
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