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DAVID DINIS: «Entre o medo e a mentira»

Nos últimos anos, temos assistido a um ressurgimento, no seio das sociedades modernas, de tendências bolorentas e nocivas que julgávamos perdidas no passado.

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David Dinis
David Dinis

Em primeiro lugar, há uma relação cada vez mais conflituosa e atípica com o conhecimento. Durante muito tempo, acreditámos que a internet e as novas tecnologias seriam veículos de democratização do saber, promovendo sociedades mais esclarecidas. No entanto, o que constatamos hoje é o oposto: a desinformação prolífera e o ruído sobrepõe-se à reflexão.

Vivemos tempos em que escasseia a humildade necessária para reconhecermos a nossa ignorância e, a partir desse reconhecimento, procurarmos aprender mais. Pelo contrário, instalou-se uma espécie de arrogância da ignorância. Há um desprezo crescente pelos meios de comunicação social e pelos discursos fundamentados dos especialistas, substituídos por certezas infundadas que ecoam nas caixas de comentários das redes sociais que se mostram como espaços cada vez mais cheios de verdades absolutas e vazios de dúvidas. Pede-se a aculturação dos imigrantes, mas ao mesmo tempo defende-se que a educação das crianças portuguesas deve ser exclusiva do seio familiar. Condena-se a "ideologia de género" sem sequer se saber definir o conceito. Cada indivíduo passou a ter a "sua verdade", e os factos passaram a ser irrelevantes só importando aquilo que confirma os nossos preconceitos e viés.

Em segundo lugar, esta desvalorização do conhecimento especializado trouxe consigo uma visão unidimensional dos fenómenos sociais. Problemas complexos passaram a ser explicados por respostas simples, muitas vezes reduzidas a uma única causa, quando a realidade aponta para dinâmicas multifatoriais. Os cientistas sociais, os especialistas do trabalho social, os economistas e tantos outros especialistas são, frequentemente, afastados do debate público. No seu lugar, surgem comentadores residentes, que opinam sobre tudo, mesmo sobre matérias para as quais não têm qualquer competência. Alimenta-se, assim, uma narrativa redutora que tenta, a todo o custo, oferecer explicações simplistas para um mundo cada vez mais atribulado e complexo.

Por fim, e a reboque destes fenómenos, assiste-se ao crescimento exponencial de um quadrante político que a Europa julgava moribundo desde o último terço do século XX. A extrema-direita nacionalista alimenta-se do medo, do descontentamento social, das crises económicas e do ressentimento perante um mundo em mudança. Não é de estranhar, portanto, o seu recrudescimento. Esvaziada de propostas construtivas, define-se sobretudo pelo que rejeita, razão pela qual muitos a designam, no meio académico, como a ideologia dos "anti". Anti-imigração, anti-globalização, anti-feminismo, anti-direitos das minorias, anti-intelectualismo. Mas onde a extrema-direita se mostra particularmente eficaz é na identificação de bodes expiatórios para explicar as crises sociais, prometendo soluções fáceis para problemas de elevada complexidade.

Recentemente assistimos à intensificação do discurso de ódio, em diversas frentes. Mas torna-se particularmente evidente que, para a extrema-direita, a principal causa dos problemas nacionais é a população imigrante. Seja na crise da habitação, nos problemas do Serviço Nacional de Saúde, ou no aumento da criminalidade, todos os problemas parecem ter, de repente, uma única explicação. Naturalmente, isto não corresponde à realidade. A sociedade portuguesa enfrenta desafios sérios e multifacetados, mas a tentação de reduzir tudo a uma única variável só serve os interesses de quem pretende instigar o medo e divisões.

O obscurantismo tomou conta do nosso tempo e tudo indica que as trevas crescerão antes que possamos vislumbrar o regresso da luz.