RICARDO FERREIRA: «Camus, os Velhos e a Nossa Vergonha»
“Quando cheguei ao asilo para o funeral da minha mãe, fui chamado ao gabinete do director para falar com ele. Disse-me:

— A senhora sua mãe entrou para aqui há três anos. O senhor era o seu único amparo.
Julguei que estava a fazer alguma censura e comecei a explicar-lhe. Mas ele interrompeu-me:
— Não tem de se justificar, meu filho. Estive a ler o processo da sua mãe. O senhor não podia suportar as despesas. Ela precisava de uma enfermeira. O seu ordenado é modesto. E, no fim de contas, aqui ela era mais feliz.
Disse:
— Sim, senhor director.
Acrescentou:
— Sabe, senhor, aqui ela tinha amigos, pessoas da mesma idade. Partilhava com eles motivos de interesse que são de um outro tempo. O senhor é novo, e ao pé de si ela aborrecia-se, com certeza.”
Albert Camus tem este efeito. Transforma a simplicidade honesta e crua em magia angustiante. E o problema? É que a ficção abraçou a realidade.
O que estamos nós, sociedade, a construir? Que mundo é este? Esta passagem chocou-me profundamente, deixou-me bloqueado e absorvido nos limites da mente.
Dizem que nunca lemos o mesmo livro da mesma forma. E foi o caso.
Reler a obra O Estrangeiro, de Albert Camus, foi uma decisão impulsiva que se revelou acertada. Talvez as experiências adquiridas com o passar dos anos que me separaram desta obra, me tenham feito absorvê-la com outra intensidade.
Meursault podemos ser todos nós. E, no que diz respeito a esta passagem, Meursault é a sociedade actual, moderna, produtiva, intensa, egoísta… que vê os velhos como problemas logísticos, com as suas doenças, os seus queixumes e que não se encaixam no ritmo acelerado da vida moderna.
Meursault era a única família de sua mãe, “o seu único amparo”, e, quando o director o confronta com isso, ele sente necessidade de se desculpar. Não porque sinta, no seu íntimo, que tinha um dever moral para com a sua mãe, mas porque é o suposto nesse tipo de situações.
Ainda assim, o director do asilo não vê necessidade de Meursault se desculpar e, até de uma forma benevolente, acaba por lhe fornecer o argumento que poderia aliviar esse
sentimento de culpa. Mas o próprio argumento é pesado, e é difícil de digerir tal é a violência que transmite.
“O senhor não podia suportar as despesas. Ela precisava de uma enfermeira. O seu ordenado é modesto.”
Estamos resumidos a operações financeiras, a folhas de cálculo e à frieza moderna que valoriza os seres humanos apenas em idade produtiva. Quando esses seres humanos se tornam empecilhos e se tornam despesas, é criado o ambiente que os leve, se possível voluntariamente, a passar os últimos tempos num asilo. E, se o Estado criar as condições para que estes sejam depositados nestes armazéns de velhos, repartindo os custos pela sociedade, tanto melhor. Melhor para quem? Para os velhos de amanhã, que, sem darem conta, estão a normalizar a angústia que os espera.
Politicamente falando, esta foi mais uma derrota do conservadorismo, que trocou a família por estranhos para cuidar dos nossos velhos. Tudo isto em nome do estado social que vem substituindo a família.
Que tempos são estes, em que a cultura da idolatria à novidade, à inovação, ao futuro e ao agora, ignora e despreza o passado? Mesmo quando o futuro está agora à nossa frente, com o seu passado, com as suas marcas, memórias e transmissão de valores.
“E, no fim de contas, aqui ela era mais feliz.”
Esta frase, quem não a ouviu e quantos não a disseram? Como é que alguém, que não o próprio, o pode afirmar? Como é que se supõe que uma mãe/pai é mais feliz num asilo, rodeado de estranhos, do que com os seus filhos? Sejamos honestos, nem que seja por uma vez na vida. Quem é mãe/pai, mesmo que afirme tal coisa, sabe que apenas o faz porque não quer ser um estorvo para os filhos. E o amor pelos filhos é tal, que por eles abdicamos das nossas vidas. Aceitamos a morte social que antecede a morte biológica.
Meursault nem tenta argumentar, não procura reflectir sobre o que lhe está a ser dito. Simplesmente aceita.
“Aqui ela tinha amigos, pessoas da mesma idade. Partilhava com eles motivos de interesse que são de um outro tempo. O senhor é novo, e ao pé de si ela aborrecia-se, com certeza.”
Senti um golpe no estômago.
Mas por que é que um velho tem de querer estar rodeado de outros velhos? Porque é que este pensamento, que se vem enraizando na sociedade, vagueia por nós como se fosse natural? Não é. Ninguém quer saber de “estar com pessoas da mesma idade”. As pessoas querem pertença, utilidade, ver crescer netos e bisnetos, querem almoços em família, relembrar histórias esquecidas no tempo. As pessoas querem sentir que alguém as quer. O que aborrece não é estar com pessoas em fases distintas da existência, mas sim o distanciamento que os novos tempos têm trazido para a sociedade. Uma sociedade de preenchimento material e vazio espiritual. Onde o conforto se sobrepõe ao amor que em tempos se dizia incondicional. Estamos a desistir de aprender a conviver entre gerações.
E não, eu não ignoro que há situações excepcionais. Mas é isso mesmo que elas são: excepções. E as excepções não podem virar a regra.
Meursault era a única família de sua mãe, “o seu único amparo”, e ele passou um ano sem a visitar, porque lhe tomava o domingo.