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Um apelo à prevenção e consciencialização para a doença hepática

O Dia Mundial do Fígado é uma oportunidade única para sensibilizar a população sobre a importância deste órgão vital e a alertar para as doenças hepáticas, muitas vezes silenciosas e subdiagnosticadas. O fígado, o segundo maior órgão do corpo humano, realiza mais de 500 funções essenciais à vida e desempenha um papel crucial a vários níveis, nomeadamente na função digestiva, na produção e excreção de bílis, na metabolização e armazenamento de nutrientes provenientes da absorção intestinal, na síntese de proteínas, enzimas e hormonas, no controlo dos níveis de glicose no sangue, na metabolização e excreção de múltiplos compostos orgânicos endógenos e exógenos, entre muitas outras.

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Paulo Carrola (Coordenador do Núcleo de Estudos das Doenças do Fígado da SPMI)
Paulo Carrola (Coordenador do Núcleo de Estudos das Doenças do Fígado da SPMI)

Em 2025, a celebração deste dia assume uma particular relevância face ao aumento global da prevalência de algumas doenças hepáticas crónicas, impulsionado por diversos fatores como sejam o consumo excessivo de álcool, a obesidade e as infeções virais.

Atualmente, estima-se que mais de dois mil milhões de pessoas no mundo sofram de alguma forma de doença hepática. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de um milhão de mortes anuais são atribuídas a doenças hepáticas, representando uma das principais causas de morte a nível global. Em Portugal, as doenças hepáticas também têm um impacto significativo. Segundo o último relatório do Programa Nacional para as Hepatites Virais 2024 (fonte INE), a mortalidade por doença hepática em Portugal apresenta uma tendência de crescimento em relação à doença hepática crónica/cirrose e, consequentemente, ao carcinoma hepatocelular, traduzindo uma realidade preocupante que urge alterar.

O World Liver Day é uma campanha conjunta de várias associações internacionais para o estudo do fígado e doenças hepáticas e estabeleceu como mote para 2025 “food is medicine”. Esta analogia, “alimentos são medicamentos” não poderia ter sido mais bem escolhida. A doença hepática esteatósica associada à disfunção metabólica (MASLD), anteriormente conhecida como fígado gordo não alcoólico, tem vindo a crescer exponencialmente, em breve afetará cerca de 30 % da população mundial, devido ao aumento das doenças associadas à perturbação do metabolismo, onde se inclui a diabetes mellitus, a obesidade e a dislipidemia, todas elas associadas a estilos de vida pouco saudáveis. Sem uma intervenção adequada na prevenção, seguimento e tratamento destas doenças iremos assistir a um aumento significativo das formas mais avançadas de doença hepática, como a cirrose, e ao aumento da transplantação hepática por esta causa. Além da MASLD não podemos esquecer as outras formas de doença hepática esteatósica associadas à perturbação do uso do álcool, quer de forma combinada (MetALD – doença hepática esteatósica associada a disfunção metabólica e álcool), quer sob a forma isolada de consumo (ALD – doença hepática esteatósica associada a perturbação do uso do álcool), o que torna este problema de intervenção e resolução mais abrangente.

Dentro das outras causas de doença hepática, não podemos esquecer as hepatites víricas, onde se destacam as Hepatites B e C, que continuam a ter um forte impacto na saúde pública, nomeadamente nas suas formas crónicas, apesar da existência de uma vacina eficaz contra a hepatite B e tratamentos curativos para a hepatite C. Embora menos comuns, as doenças hepáticas autoimunes, onde se incluem a hepatite autoimune, a colangite biliar primária e a colangite esclerosante primária, apresentam também elas um impacto significativo na qualidade de vida dos doentes e podem levar a doença hepática crónica se não forem adequadamente tratadas, podendo evoluir para situações mais complicadas, incluindo o carcinoma hepatocelular. Neste último, o diagnóstico precoce continua a ser um dos maiores desafios, sendo essencial o rastreio em grupos de risco.

E que medidas práticas podemos implementar para alterar ou inverter esta realidade? A aposta na prevenção com a promoção de estilos de vida saudáveis, incentivando uma alimentação equilibrada, a prática regular de exercício físico e a redução do consumo de álcool e tabaco é sem dúvida a mais importante. Mas não podemos esquecer outras medidas, nomeadamente a melhoria do acesso ao diagnóstico precoce nas hepatites virais, da MASLD (que tem de incluir o diagnóstico e controlo dos fatores de risco cardiovasculares) e do carcinoma hepatocelular, garantindo que as populações de risco sejam avaliadas regularmente. Igualmente importante, no caso das hepatites virais, é o objetivo de rastrear pelo menos uma vez na vida.

Não poderia terminar sem destacar um dos principais flagelos da nossa sociedade, a perturbação do uso do álcool. Em Portugal, o consumo excessivo de álcool constitui ainda uma das principais causas de morte por doença hepática. A aplicação de regulamentação nacional e comunitária, cada vez mais restritiva nos mercados das bebidas alcoólicas, tem produzido resultados, mas é necessário ir mais além. O apoio a programas de saúde mental e alcoologia é também uma prioridade que deve intervir em vários eixos, nomeadamente em serviços de apoio para indivíduos com perturbação do uso do álcool, na promoção e acompanhamento da reabilitação e na prevenção da progressão da doença hepática.

Neste Dia Mundial do Fígado, o apelo é claro: a saúde hepática é um compromisso coletivo. As autoridades de saúde, profissionais e cidadãos devem todos eles ser elos ativos nesta dinâmica e unir esforços para promover a prevenção, o rastreio e o tratamento adequado das doenças hepáticas.

Paulo Carrola (Coordenador do Núcleo de Estudos das Doenças do Fígado da SPMI)