O que é isso de “Fanzine!?
Torres Vedras, com a edição do fanzine “Impulso” em 1973, foi pioneira em Portugal na edição desse tipo de publicações. Mas o que é isso de um “Fanzine”?

A palavra deriva da combinação de “Fã” (fanático ou entusiasta) e “Magazine” (publicação em revista). O Dicionário de Língua Portuguesa da Academia de Ciências define “Fanzine” com “revista editada por amadores sobre temas que lhe são caros”.
A nível mundial, uma das características desse tipo de edições é existir e ser divulgada à margem do circuito comercial, não lucrativo, com edição irregular, de pequena tiragem e usando técnicas alternativas e experimentais, estando, por isso, muito ligada a circuitos de cultura alternativa e/ou “underground”.
Geralmente a sua edição dedica-se apenas a um tema, de entre muitos que vivem naquilo que é a marginalidade e/ou o experimentalismo cultural, como o policial, a ficção científica, a Banda Desenhada, a musica popular, como aconteceu com o movimento “punk” dos anos 1970, as artes gráficas e plásticas, ou, mais raramente, a poesia, como aconteceu recentemente em Cabo Verde. Também pode combinar mais do que um dos temas referidos.
O facto de a sua edição ser em moldes amadores e marginais, não quer dizer que artistas consagrados e profissionais recorram à sua edição, muitas vezes com carácter experimental ou para fugir à censura. Neste caso, se estamos a falar de um fanzine feito por profissionais ou artistas consagrados, estamos perante um “prozine”, uma edição feita por profissionais, mas sem fins lucrativos e de tiragem reduzida.
Os primeiros fanzines surgiram nos Estados Unidos com a edição, em 1929 do “Cosmic Stories” e, em 1930, com “The Comet”. Estes primeiros fanzines dedicavam-se a uma literatura então considerada marginal, a ficção cientifica e num deles, o “Futuria Fantasy”, editado em 1939, iniciou a sua carreira literária um dos futuros grandes nomes da literatura de ficção cientifica, Ray Bradbury.
Foi através da edição de fanzines, desta vez dedicados à Banda Desenhada, que, em 1933 Jerry Siegel e Joe Shuster, que foram os criadores da série “Super-Homem”, se iniciaram na sua obra criativa.
O aparecimento da Marvel em 1939 e o êxito das suas publicações originaram um movimento de fans que, um pouco por todos os Estados Unidos, se organizaram em clubes e editaram boletins em formato amador para divulgar os seus personagens preferidos.
Mas foi a partir da década de 50 do século passado que se iniciou um verdadeiro movimento de “fanzines” de Banda Desenhada nos Estados Unidos, publicados à margem do circuito comercial.
Tudo começou com a publicação do “Comic Code Authority” em 1954, em pleno marcatismo, um código de censura proposto pelas associações de editores de “comic-books”, com origem nas conclusões de um controverso livro do psicólogo Frederic Werthman, publicado nesse mesmo ano. Nesse estudo, o seu autor culpava a violência das histórias em quadradinhos pelo aumento e agravamento da delinquência juvenil no país.
Para escapar à censura desse código muitos autores recorreram à edição de publicações à margem do circuito comercial, de pequena tiragem, vendidas por correio , para escapar à atenção dos censores, geralmente a preto e branco, já que o “Comic Code” apenas regulamentava as revistas a cores.
Dá-se assim uma profusão de fanzines de Banda Desenhada, que estiveram na origem do movimento underground e dos “Comix” que dominou a cultura alternativa da década de 60 do século passado. Destacaram-se títulos como “Trump”, de 1957, de Harvey Krutzman, futuro criador da famosa revista “Mad”, “Help” que, entre 1960 e 1965, foi a mais importante revista co chamada Comix ou “Comics Underground”, onde colaborram autores como Gilbert Shelton ou Robert Crumb, este último criador do famoso “Fritz the Cat”, e “Witzend” de 1966, entre muitos outros títulos.
Com o início da guerra do Vietname em 1963 e o acentuar da censura, agora alargada a temas políticos e militares, deu-se a proliferação de vários títulos de uma cada vez mais criativa imprensa clandestina de fanzines, onde colaboram alguns dos nomes acima citados, e aos quais se junta Art Spiegelman, criados de “Maus”.
Esse movimento vai chegar à Europa, ao logo da década de 60 do século passado, primeiro aos países de língua inglesa, como a Irlanda, país onde surge o primeiro fanzine europeu, “Mary Marvel” , e à Grã-Bretanha e, pela primeira vez no continente, em França em 1962 com a fundação de “Giff-Wiff”.
“Giff Wiff” foi editado como boletim do recém criado Clube de Banda Desenhada e nele colaboraram o cineasta Alain Resnais, o primeiro grande estudioso dessa arte François Lacassin ou autor e criador Jean- Claude Forest. Nesse boletim publicam-se muitos estudos sobre a BD e teoriza-se sobre a mesma, contribuindo para a sua classificação como 9ª arte.
Em 1966 surge outra publicação de referência, embora já não se possa considerar um fanzine, mas mais uma revista, “Phénix”, que vai durar até 1977. Após o Maio de 1968 dá-se uma profusão de fanzines com carácter experimental e de divulgação, moda que chegará a Portugal no início da década seguinte.
A divulgação do movimento dos fanzines em Portugal deve-se ao início da publicação da revista “TinTin”, em 1968, onde Vasco Granja, nas rubricas “O Mundo da BD” e “Fanzinologia”, regista o movimento de fanzines (fandom) europeu. Essa divulgação coincide com um período de abrandamento da censura iniciado na primeira fase do “marcelismo” (1968-1970). Se juntarmos a isto uma nova técnica de impressão mais barata e acessível, como o uso do stencil electrónico, introduzido nas escolas, em grande crescimento devido à reforma Veiga Simão, para a elaboração de testes, e, pouco depois, do offset, estavam criadas as condições para o surgimento do movimento dos fanzines em Portugal.
Há quem considere como pioneiro isolado do espírito dos fanzines em Portugal o consagrado autor José Garcês que, em 1944, editava um único exemplar manual de “O Melro”, divulgando os seus primeiros trabalhos, exemplar que ele fazia circular, em troca de um aluguer, entre os amigos.
Mas o verdadeiro movimento de fanzines de BD em Portugal surge em Janeiro de 1972 com a edição de “Argon”, editado em Lisboa pelos alunos do Liceu Gil Vicente, que publicou 5 números até 1974.
Ao longo desse ano iniciaram a publicação mais 6 fanzines, “Saga” do ABC cineclube de Lisboa, que editou 3 números, um deles experimental, “Quadrinhos”, na Amadora, do já mencionado Vasco Granja, do qual se publicaram 7 números até 1974, “Copra”, em Coimbra, de José de Matos-Cruz, que conheceu 4 edições, “Ploc!”, da Moita, editado por Al Bonjour, com 4 edições até 1974, e “Yellow Kid”, editado pelos Amigos da BD da Amadora, editando 2 números. Nesse mesmo ano, na então província de Moçambique, em Lourenço Marques, actual Maputo, surgiu o fanzine “Orion”, um dos primeiros publicados no continente africano, do qual se publicaram 9 números até 1974.
O primeiro fanzine editado em Portugal em 1973 foi o torriense “Impulso”. Editado por alunos do então Liceu de Torres Vedras e conheceu 5 edições ao longo desse ano. Em 1976 conheceu mais duas edições, então já integradas no seio do Cine Clube de Torres Vedras, uma primeira como nº 1 de uma 2ª série e outro, em formato A5, um “fora de série” editado por ocasião do 20º aniversário do Cineclube e para acompanhar a 1ª exposição de BD em Torres Vedras, no Clube Artístico e Comercial, em Outubro desse ano. Recentemente, em 2023, por ocasião do cinquentenário da sua primeira edição, foi publicado um número comemorativo, edição repetida no ano seguinte e novamente este ano, o que perfaz, até ao momento, 10 números publicados, prevendo-se a continuação da edição de um número anual por ocasião do BDVEDRAS.
Depois de um período de crise na edição de fanzines, nos primeiros anos deste século, essa forma experimental e criativa de divulgar autores de BD tem vindo a conhecer um novo alento nos últimos anos, acompanhando também um crescente movimento editorial cujo experimentalismo espelha muito do espírito dos “fanzines”.
Venerando Aspra de Matos