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ANA ALMEIDA: «A história do carnaval de Torres Vedras, o Património Cultural Imaterial e a desinformação»

No artigo de opinião publicado no jornal Badaladas da edição anterior de 16 de maio, intitulado: A história do Carnaval de Torres Vedras está a ser mal estudada e divulgada! E é precisamente essa história que é Património Nacional e querem que seja Património da UNESCO…, são expressas informações que não contribuem para o esclarecimento do assunto e geram efetivamente desinformação. Por esse motivo, gostava de esclarecer alguns pontos referidos no citado artigo:

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Ana Almeida
Ana Almeida

É referido que o Carnaval de Torres Vedras é uma manifestação com mais de 450 anos de história documentada e que ao pertencer à lista de Património Cultural Imaterial (Nacional ou da UNESCO), deve cumprir um conjunto de obrigações, obrigações essas que são desrespeitadas pela desinformação e por falta de conhecimento / estudo das entidades responsáveis.

O Património Cultural Imaterial (PCI) refere-se a manifestações e práticas, que são transmitidas de geração em geração e constantemente recriadas pelas comunidades (que as mantém vivas) e não dizem respeito à antiguidade da manifestação. Isto é, não é a história (nem bem nem mal estudada) que é património nacional, como afirma o autor no seu artigo. O carnaval poderia ter 600 ou 800 anos, se fosse encontrado um documento anterior a 1574 (primeira referência documental conhecida do Carnaval de Torres), que não mudaria absolutamente nada quanto à sua inclusão na lista de Património Cultural Imaterial (Nacional ou da UNESCO). Além do mais convém referir, mais uma vez, de que a manifestação mencionada em 1574 refere-se à “corrida ao galo”, prática conhecida pelo menos na península Ibérica (1) e que nada tem que ver com a natureza do carnaval que existe atualmente em Torres Vedras, e de que foi alvo de registo no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (INPCI).

A distinção entre o entrudo (cujas raízes são intemporais) e o carnaval urbano e burguês (do final do séc. XIX) que foi replicado em várias capitais europeias, a partir do modelo de carnaval mediterrâneo (em especial de Nice), é consensual entre vários investigadores que têm trabalhado a temática. O Carnaval de Torres Vedras, que persiste e é praticado atualmente, radica nesse carnaval burguês (chegada do rei, corso, carros alegóricos, bailes de máscaras), apesar de ter vestígios do entrudo como o enterro do entrudo (prática existente em várias regiões associadas ao calendário agrário rural).

Quanto às obrigações associadas ao PCI que o autor afirma estarem a ser desrespeitadas, cabe-me informar que só existe uma obrigação associada à salvaguarda do Património Cultural Imaterial, tal como prevista na convenção da salvaguarda do PCI da UNESCO (2003) e no Decreto-Lei n.º 139/2009 de 15 de junho, que se trata de registar a manifestação no INPCI (que lhe confere o ato legal e o ato de salvaguarda). Devem também ser proporcionadas condições para a comunidade reproduzir a manifestação cultural, permitindo a sua (re)criação a partir dos tutores e/ou detentores da prática, isto é, os seus praticantes.

Ora, o anuncio nº 66/ 2022 relativo à inscrição do carnaval de Torres Vedras publicado no Diário da República refere: “A inscrição do Carnaval de torres Vedras no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial reflete os critérios constantes no artigo 10º do referido diploma, destacando a importância de que se reveste esta manifestação do património cultural imaterial enquanto reflexo da identidade da comunidade envolvente e os processos sociais e culturais nos quais teve origem e se desenvolveu a manifestação do património cultural imaterial na contemporaneidade.”

Ao nível da inscrição do Carnaval na lista representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade (UNESCO), existem outras recomendações, como a participação da comunidade na salvaguarda do PCI enquanto detentores e transmissores da manifestação e, em especial, no esboço dos planos de salvaguarda do PCI perante as ameaças à continuidade ou transmissão da manifestação. Este processo foi transparente e está documentado no site página do Centro de Artes e Criatividade (CAC), tendo-se cumprido tudo o que é solicitado (Candidatura à Lista da UNESCO - Centro de Artes e Criatividade).

Portanto, quando é referido que o desrespeito pelas obrigações pode levar à desclassificação de Património devido ao facto de nem todas as informações presentes no inventário nacional serem verdade, podemos afirmar categoricamente que o autor está a divulgar desinformação.

Em primeiro lugar, tal como acabei de argumentar, as “obrigações” associadas ao PCI estão apenas associadas ao registo da prática no inventário nacional; à identificação de riscos e delineação de planos de salvaguarda que visam a continuidade da manifestação no seio da comunidade. Em segundo lugar, não há desclassificações do PCI na UNESCO. O que já aconteceu efetivamente, foi a retirada da lista do carnaval de Aalst por decisão do comité intergovernamental, acusado de antissemitismo devido a uma sátira de um carro alegórico, tendo sido alegado o não cumprimento dos princípios da convenção da UNESCO.

Assim, se o Carnaval for excluído da lista do PCI da Humanidade da UNESCO não será porque é mal estudado, como argumentado, mas porque as medidas de salvaguarda referidas no plano de salvaguarda não foram tidas em consideração e/ou os princípios da convenção da UNESCO não foram respeitados.

O autor critica vários autores locais que estudaram o tema e cita inúmeras fontes de imprensa e referencias bibliográficas como se fosse o único que, até ao momento, leu os documentos citados e os interpretou corretamente.

A este respeito, só gostava de referir que, para a História, os documentos exigem de quem os estuda, distanciamento para a crítica das fontes assim como cruzamento de informação (por vezes contraditória), carecendo de interpretação (algumas vezes subjetiva).

Quando temos uma única fonte escrita, de facto, apenas nos podemos basear no que é relatado, por isso, se tivermos acesso a mais fontes, mais rica será a obtenção de informação e de perspetivas dos envolvidos.

No caso do Património Cultural Imaterial, como o carnaval, as fontes orais revestem-se de extrema importância, porque tal como referido acima, estas práticas culturais são protagonizadas pelas pessoas e são elas que nos transmitem e documentam a riqueza das visões da comunidade sobre a festa. Este é um dos trabalhos que tem sido feito no CAC. Neste momento, existe um espólio documental de dezenas de horas de entrevistas a protagonistas do carnaval. Alguns excertos estão disponíveis na exposição permanente do CAC.

Não me vou alongar mais, questiono-me apenas de quais serão as motivações do autor do blogue Torres Vedras Antiga para dedicar tanto do seu tempo a este assunto e contribuir, de facto, para a desinformação.

 

Nota:

1 - CARO BAROJA, Julio 1914-1995 - El carnaval : (análisis histórico-cultural). Madrid : Alianza Editorial, cop. 2006. 534 p.. ISBN 84-206-6017-5

 Ana Almeida