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NOZES PIRES: «O Pensador»

Eu guio-me pelo que sei, diz o homem. O que sei dizem-mo os especialistas que controlam as máquinas. Tudo se resume a máquinas. As máquinas não nos enganam, nem os números erram.

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Nozes Pires
Nozes Pires

Dizem-me que amanhã o sol nascerá de novo e aquecerá muito o dia. E eu creio. Tudo na sociedade se baseia na confiança, a confiança baseia-se no produto, a produção baseia-se no crédito. Isto é, no credo. O credo é uma espécie de fé. A dívida não é dúvida, é credo, isto é, crédito. Pagarás o que nos deves, eis o Primeiro Mandamento. Penso deste modo, por isso existo como sou. Existe-se assim ou assado, e eu existo assim. Pensa o homem. Agora está sentado, à fresca, com uma cerveja na mão. Neste agora eu existo, sentado, com uma Super Bock na mão. Assim pensa o homem. Amanhã de manhã, se ao acordar conseguir mexer os dedos dos pés, eu existirei ainda. Tomo o café, folheio o CM que está ali posto de graça para os clientes, o mesmo jornal que está ao dispor dos clientes dos outros cafés. Toda a gente lerá o mesmo. O mesmo significa segurança, confiança. E a confiança é o eixo da roda, pensa o homem. Um cancro no pulmão matou o meu cunhado mais depressa que o diabo esfrega um olho. É a vida, pensou o homem, para morrer basta estar vivo. É a ordem das coisas. Não disse “imutável”, "inexorável", palavras dessas não lhe ocorrem ao espírito. Escutou-as de alguém, mas não se lembra delas porque não precisa. Na realidade nunca delas precisou para vencer na vida. O essencial resume-se a duas ou três substâncias. A primeira é “Eu quero”, a segunda é “Eu tenho”, a terceira é” Eu faço”. Posso juntá-las numa única, pensa o homem: “Eu sou o que quis, o que tenho e o que faço”. Com esta certeza o mundo tem sentido. A vida tem significado, pensa o homem. Pensa, mas não penses naquilo que não te serve para nada, repetia-lhe o pai quando era pequeno, tão pequeno que o mundo parecia-lhe uma enorme desordem sem sentido. Agora, pelo contrário o mundo parece-lhe pequeno com sentido. Não porque viaje muito, mas porque a televisão o mostra. E mostrar-se é ser. O meu irmão não se mostrava nem acreditava no que lhe mostravam. Era casmurro e solitário. Falava pouco e o pouco que dizia era para colocar um ponto de interrogação em tudo que lhe diziam. Por isso ele próprio era um ponto a mais nos encontros da família. Uma carta fora do baralho. Paz à sua alma atormentada. A minha, pelo contrário, é confiante. Acusava-me de oportunismo e arrivismo (insulto pesado que eu atribuí à inveja), eu respondia-lhe com um sorriso de desprezo. Tanto desprezo os falhados como os que se julgam muito inteligentes mas não sabem aproveitar as oportunidades quando elas surgem à frente dos olhos. Eu sei que estou no caminho certo: mostro-me colaborador quando o chefe exige colaboração; mostro-me empreendedor quando a empresa o que precisa é de empreendedorismo para vingar no mercado; cumprimento toda a gente para toda a gente gostar de mim; ofereço almoços para que amanhã receba em troca o que pedir. Porque saber viver bem é saber trocar e escolher bem. O mundo é um infinito mercado, no mercado fazem-se trocas. Assim pensa o homem.

Um dia, porém, que se anunciava seguro e confiante, o homem foi colocado na prateleira pelo chefe. Disponível para coisa nenhuma, descartável como as latas de sardinha depois de usadas. Explicação chegou na hora, simples, curta, incisiva: redução dos custos, começando pelos colaboradores mais velhos. O mundo para o homem tornou-se nesse instante pequenino, cruel e ingrato. Quebrou-se o elo da confiança. O homem passou a odiar, primeiro o chefe, depois os garotos e os imigrantes que o substituíram por tuta e meia, a seguir generalizou, olhou para cima e viu o Estado, as leis, o "sistema" que discriminava os melhores servidores como ele próprio sempre fora. Em suma: a corja dos políticos. Assim pensou o homem. E desejou, por dentro do nevoeiro sombrio dos seus ódios, confiar em alguém. Num chefe redentor que dissesse o que ele queria ouvir. Um deus vingador, que viesse destruir e criar tudo de novo. Varrer os partidos e as classes. Castigar os ricos que não lhe retribuíram os almoços.