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LUCAS QUARESMA: «Desabafo Israelo-Palestiniano»

Começo este artigo por afirmar que o Conflito Israelo-Palestiniano é um tema que não me transporta nenhum agrado analítico, não por ser um conflito altamente mortífero e amoral, como tantos outros cuja análise julgo enriquecedora e interessante, antes por possuir uma profunda incapacidade de simpatizar com as governanças dos dois Estados.

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Lucas Quaresma
Lucas Quaresma

Devo, de igual modo, afirmar que não sou um amigo do Estado de Israel e que não sou, tão pouco, amigo do Estado da Palestina, a quem veto legitimidade às suas lideranças políticas.

Sou, no entanto, um simpatizante, como qualquer humanista, do sofrimento do povo judeu às mãos do Terceiro Reich. Sou, enquanto irrefutável defensor da primazia do Direito Internacional, defensor da causa-palestiniana.

Alerto, também, para a inexistência de incompatibilidades nestas duas dimensões, apesar de hoje, num cenário digital profundamente influenciado pelas preferências políticas dos Estados Unidos da América, isto seria interpretado como antissemitismo, sem sê-lo.

Com o intuito de fundamentar as minhas considerações e quem sabe, alertar alguns leitores para a complexidade do fenómeno, irei abordar em primeiro lugar o porquê de não considerar legítimas as governanças de ambos os Estados.

Hoje, num processo com origem distante, Israel é governado por radicais embelezados pelo mantra do liberalismo norte-americano, numa liderança alicerçada em partidos como o Likud, o Shas ou o Religious Zionist Party, chefiada por Benjamin Netanyahu, presenteado em 2024 com um mandado de captura emitido pelo Tribunal Penal Internacional.

Falar deste conflito reaceso e a assumir repercussões humanitárias que rivalizam na miséria e tragédia com a IIª Guerra Mundial, requer relembrar que ainda em 2019, no final da campanha eleitoral para a sua reeleição, Netanyahu afirmou que iria anexar regiões na Cisjordânia que eram reclamadas pelo povo e pelo Estado da Palestina como suas, com base numa retórica semelhante à justificação de Vladimir Putin quando questionado sobre a invasão da Ucrânia.

Hoje, num triste processo – em muito associado aos interesses israelitas – a Palestina encontra-se internamente dividida e oprimida, governada por radicais, chegados ao poder em 2006, com um discurso que rivaliza com as ações de Israel, a defesa de um só Estado.

Falar da liderança palestiniana, distante de visões de beatitude ou santidade, é também referir a postura errante e discricionária com que o Hamas tem conduzido a sua atuação, sem acautelar a proteção…

Um outro e não menos relevante fator para a minha diminuta contribuição para a análise deste Conflito é aquilo que o mesmo representa na dinâmica da Ordem Internacional, a podridão do sistema de mediação internacional, corrompido pelos Estados Unidos e por Israel, mas não só.

A dinâmica fundacional de Israel, resulta de um processo ambíguo e que lhe atribuiu um senso de superioridade face aos restantes povos, especialmente, o povo da Palestina, num fenómeno único e motivado por considerações neocoloniais e imperialistas, o território da Palestina, controlado pelo Reino Unido desde a queda do Império Otomano no pós-Primeira Guerra Mundial, foi fracionado no pós-Segunda Guerra Mundial de modo a acolher a formação de um estado judaico (Resolução N.º 181 de 1947).

Esta ação, é para os mais leigos interpretada como um ato de compensação e de proteção para a comunidade mais afetada pelos terrores da Alemanha nazi, no entanto, é a clara violação de dois princípios fundamentais do Sistema e do Direito Internacional, o Princípio à Autodeterminação dos Povos e à Soberania (integrando-lhe a dimensão da não-interferência).

Deste ato de prepotência do Ocidente Liberal, encabeçado pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, nasceu no território do Estado da Palestina, terra de islamismo sunita, o Estado de Israel, como terra do judaísmo.

De um expectável conflito, entre Palestina e Israel, onde a Palestina – num sistema regido pelo direito internacional e não pelo capital norte-americano – estaria moralmente e legalmente apta para exercer o seu direito à Guerra, nasceu uma variável sempre indesejada em situação de conflito, a religião.

Desta variável, sucederam-se conflitos regionais alargados, conhecidos em larga parte por todos, a Primeira Guerra Árabe-Israelita (1948-1949), a Guerra do Suez (1956), Guerra dos Seis Dias (1967), Guerra de Desgaste (1969-1970), Guerra do Yom Kippur (1973) e outros conflitos e confrontos contraguerrilhas ou grupos organizados associados à causa da libertação palestiniana (com apoio de outros Estados/organizações árabes).

A esta dimensão de amoralidade e de bipolaridade do sistema internacional, em especial, das instituições das Nações Unidas, recomendo vivamente a visualização da intervenção de Majed Bamya (Observador Permanente Adjunto do Estado da Palestina na ONU) em novembro de 2024, após o veto norte-americano no cessar-fogo, destacando-se a seguinte afirmação da sua intervenção: “Talvez, para alguns, tenhamos a nacionalidade errada, o rosto errado, a cor de pele errada, mas somos humanos. E devemos ser tratados como tal. Existe uma Carta da ONU para Israel diferente da Carta da ONU que todos vocês têm?”.

Para lá da representação de um Sistema Internacional tendencioso, encontramos neste conflito dimensões de ambiguidade que condicionam a capacidade rigorosa de análise, em muito, ignoradas por tantos rostos que se apresentam nas nossas televisões, sendo a mais clara – uma constância que julgo leviana nas análises internacionais – a atribuição de responsabilidade pelo início do confronto militar.

A responsabilidade, é determinante na classificação dos beligerantes e na consideração de atuação por direito inerente de legítima defesa, com a ativação subsequente dos instrumentos do Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas neste confronto, as análises podem divergir.

A análise predominante e validada pelos membros do Conselho de Segurança é a de que a responsabilidade é palestiniana, no caso, do Hamas, enquanto organização terrorista, com os ataques de 7 de outubro de 2023, lançados sobre Israel e que provocaram mais de 1200 mortes.

A análise desconsiderada e invalidada constantemente pelos diplomatas israelitas, é a de que a responsabilidade é de Israel, com base no direito inerente de legítima defesa e de salvaguarda do território palestiniano, confrontado com anexações para expansão de colonatos.

No entanto, procurando seguir a narrativa defendida internacionalmente pelos nossos parceiros comerciais e aliados militares, a ação israelita sobre a Palestina não cumpre com as regras internacionais, como o Artigo 51.º, n.º 5, alínea b), do Protocolo Adicional de 1977 às Convenções de Genebra (Protocolo I) que estabelece o princípio da proporcionalidade.

O grande diálogo que deverá ecoar, mais do que discursos de segregação ou de expansionismo territorial, de reivindicação legítima ou de chacina discricionária, é o diálogo humanitário.

As circunstâncias e condições sociais que se abateram sobre Gaza, são na sua magnitude, dos fenómenos mais preocupantes período recente, para isso, servem-nos os números, apesar da escassa fiabilidade dos mesmos, por parte dos bloqueios implementados por ambos os governos, bem como da propaganda que procuram perpetuar.

O Escritório de Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas, indicam no seu relatório de 2025, constituído com base nas informações recolhidas junto das autoridades israelitas e do Ministério da Saúde palestiniano, indicam que 69% de todas as infraestruturas na Faixa de Gaza foram destruídas, 62% das estradas estão danificadas ou destruídas, 92% das habitações estão danificadas (276 mil) ou destruídas (160 mil).

As mortes e os feridos, são potencialmente os menos fiáveis, no entanto, não menos preocupantes, com c.54 mil palestinianos mortos e 121 mil feridos, em comparação com 1200 israelitas mortos e 5400 feridos. A Action On Armed Violance afirmava que em 2024, 74% dos 40717 palestinianos mortos eram civis, pelo que este número deverá ter aumentado para cerca de 82%.

A fome chega-nos a nós constantemente, por via de imagens que chocam qualquer um, estimando-se cerca de 470 mil pessoas em situação de fome e de outros mais de 400 mil a enfrentar níveis de emergência de segurança alimentar.

A última dimensão a referir é a do bloqueio ao apoio humanitário, acompanhado da atividade da Gaza Humanitarian Foundation, uma fundação israelita, com suporte norte-americano, que assume o apoio ao povo palestiniano, no entanto, sem suporte por parte das Nações Unidas e de outras organizações, por considerações de violação dos princípios humanitários, com uma postura errante, de concentração de palestinianos esfomeados, em longas filas atrás de redes, provocando corridas desesperadas no momento de abertura das mesmas.

É neste quadro assimétrico e desumano que repousa a razão pela qual este conflito me repele enquanto objeto de análise, é mais do que um confronto geopolítico, é um espetáculo de impunidade diplomática e militar que expõe a falência moral da Ordem e do Sistema Internacional.