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LUCAS QUARESMA: «O Fantasma de Caxemira»

A reintrodução no debate televisivo da região de Caxemira e de um conflito que remonta ao fim do maior império da história recente, o conflito entre a Índia e o Paquistão, é uma pertinente ilustração do reacender de conflitos com o qual esta década nos tem vindo a presentear.

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Lucas Quaresma
Lucas Quaresma

De forma abreviada, o conflito nasceu em 1947, com a desagregação da Índia Britânica, com a formação de dois Estados, a Índia e o Paquistão, ambos sem adequabilidade para serem classificados como “Nações”, uma problemática típica deste período de descolonização que alimenta as tensões frequentes nestes e noutros territórios.

A região de Jammu e Caxemira, socialmente constituída por uma população predominantemente muçulmana e liderada pelo Marajá Hari Singh – uma figura meritória de alguma atenção por parte dos interessados em política asiática - procurou, no período de redefinição, a independência temporária, como um ato de prudência, face às conjunturas de incerteza e violência que cresciam na Índia e no Paquistão.

Apesar da prudência com a qual agiu, assistimos a um forte desagrado por parte da Índia, com a sua recusa em assinar um standstill agreement com o Principado, após o mesmo ter acordado um acordo com o Paquistão em agosto de 1947.

Estes standstill agreements eram acordos bilaterais entre os Estados Principescos do então Império da Índia e os Estados recém-criados, que estabeleciam a continuidade dos acordos administrativos entre a Coroa e os Principados, até que viessem a ser revisitados entre as partes, no caso, entre a Índia ou o Paquistão e os respetivos Principados, servindo como um modelo temporário de continuidade no período de redefinição. 

No entanto, em outubro de 1947 ocorreu um ataque promovido pelo MCP, um partido muçulmano, seguido de um novo ataque promovido por forças tribais apoiadas pelo Paquistão, levando a uma solicitação assistência militar de Singh à Índia, que ocorreu  com a condição de integração do principado.

Deste ato, nasceu a primeira guerra indo-paquistanesa  (1947-1948) e a subsequente divisão da região, com a Índia a controlar cerca de dois terços da Caxemira, enquanto o Paquistão assumiu controlo da restante área.

Desde então, a Caxemira tem sido palco de tensões constantes, resultando em três guerras entre os dois países (1947-48, 1965 e 1971) e inúmeros confrontos menores, como o que assistimos recentemente, estando a região dividida por uma LoC altamente militarizada.

Sendo, igualmente, importante recordar que a disputa territorial não se limita ao Paquistão, pois em 1962, a Índia e a China entraram em guerra pela região de Aksai Chin, um território de elevada altitude que Pequim considera essencial para ligar o Tibete a Xinjiang. Passando a China a assumir controlo de uma outra região do território da Caxemira, reforçando a fragmentação e as tensões entre três forças nucleares.

O mais recente confronto, deve-se a um ataque terrorista que ocorreu no final de abril, com autoria reivindicada pelo TRF (com associação a forças paquistanesas não confirmadas), que resultou em 27 mortes, suscitando uma resposta por parte da Índia, a Operação Sindoor de 7 de maio.

Esta operação, correspondeu a ataques aéreos contra zonas ou campos controlados por movimentos e forças terroristas em território paquistanês, no entanto, o Paquistão alega o ataque a áreas civis, com dezenas de mortes, levando a uma intensificação militar ao longo da LoC, com um registo crescente de confrontos, bem como, a constrangimentos acrescidos no domínio diplomático.

Após quatro dias de combate, entrou em vigor um acordo de cessar-fogo com mediação internacional a 10 de maio de 2025.

Entre os constrangimentos no domínio diplomático, afirma-se como relevante a suspensão do Tratado das Águas do Indo, datado de 1960, que regula a utilização dos recursos hídricos da bacia do Indo, com a Índia a promover projetos para desvio das águas dos rios Chenab, Jhelum e Indo,  vitais para a agricultura e a produção de energia no Paquistão.

Apesar de todo este confronto apresentar-se como distante e irrelevante para muitos de nós, a realidade é que esta região é um potencial tabuleiro de ensaio para um conflito alargado, com o crescente alinhamento da Índia de Modi aos Estados Unidos e à Rússia e do Paquistão à China.

Entre estes territórios de dimensão colossal, num conflito com largas décadas, no lugar da apatia e indiferença deveríamos reforçar a atenção ao risco de utilização de armamento nuclear, às posturas e ações das forças regionais e dos dois gigantes da Ordem Internacional, que novamente, demonstram passividade e complacência no uso dos recursos hídricos como arma de guerra e de tensões, como anteriormente fizeram nas tensões entre Etiópia e Egito.