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ORLANDO FERNANDES: «Os incêndios»

Portugal está outra vez a arder. As imagens são devastadoras, as histórias comovem, e a indignação enche as redes sociais. Mas não há nada de novo. Não foi azar. Foi falta de coragem.

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Orlando Fernandes (Jornalista)
Orlando Fernandes (Jornalista)

Depois de um inverno excecionalmente chuvoso, que fez crescer vegetação por todo o país, o calor e a seca chegaram de repente. Não houve tempo para cumprir as promessas de limpeza de terrenos, gestão de combustível ou criação de mosaicos florestais menos inflamáveis. Bastava uma faísca para que o país explodisse em chamas – e, como sempre, houve também quem acendesse o fósforo de propósito.

O resultado? Já ardeu mais de metade da área do pior ano de sempre, 2017, e o verão ainda vai a meio. Temos dois meses pela frente, com ondas de calor cada vez mais intensas e ventos imprevisíveis. É uma tragédia anunciada, que repetimos ano após ano.

 Sabemos as causas de cor. As nossas paisagens são altamente inflamáveis – por um lado estão cobertas por plantações intensivas de espécies inflamáveis, escolhidas não pela resiliência ao fogo, mas pelo lucro rápido.

 Por outro, temos grandes extensões de matos pirolitos resultado da alta frequência do fogo, que se usa para as “limpar”. Os verões tornam-se mais secos e extremos com as alterações climáticas. O combate continua a assentar num sistema de bombeiros voluntários mal pagos, mal treinados e mal equipados, onde o rendimento depende do número de incêndios. Quanto mais arde, mais se ganha.

A prevenção está entregue a contratos sazonais que colocam trabalhadores precários a cortar mato ao longo de estradas e povoações, numa escala insuficiente para o desafio que enfrentamos. E os meios pesados e aéreos estão concentrados em poucas empresas privadas, algumas com ligações directas ao poder político, que negoceiam com o Estado quando e como querem intervir. È um sistema de incentivos perversos, onde o fogo é, para muitos, um negócio.

No terreno, o fogo também é usado como ferramenta. Queima-se para abrir pastos, para ganhar subsídios, para limpar mato, para facilitar a caça, ou simplesmente por vingança ou conflito de vizinhança. A probabilidade de ser apanhado é mínima, e a punição, quando existe, é simbólica. Arder compensa – e por isso arde.

Não precisamos de mais estudos ou diagnósticos. Precisamos de coragem para mudar.

 Coragem para criar um corpo de bombeiros profissional, público e independente, onde a formação e o mérito contem mais do que a tradição. Coragem para ter uma proteção civil e forças policiais com critérios de competências, capazes de antecipar riscos e atuar com eficácia.

Coragem para acabar com o lucro do fogo, impondo uma moratória de pelo menos dez anos sobre qualquer uso económico das áreas ardidas: sem pastoreio, sem extração de madeira, sem construção, sem subsídios, sem alteração do uso do solo. Coragem para responsabilizar e punir, de forma exemplar, quem ateia fogo ou dele beneficia.

Coragem também para repensar a prevenção. A limpeza mecânica tem o seu papel, mas sozinha não chega. Precisamos de voltar a ter herbívoros selvagens e semisselvagens – cavalos, bovinos, veados – a gerir o mato de forma natural e contínua. Precisamos de espécies engenheiras como o castor, capazes de criar zonas húmidas e reduzir o risco de incêndio, e de restaurar florestas nativas que quebrem a continuidade do combustível e criem mosaicos de paisagem mais resilientes. É possível conciliar conservação, produção e segurança, mas para isso é necessário pensar o território a longo prazo, com inteligência e visão.

Se nada mudar, 2025 será apenas mais uma marca negra na nossa história, e as tragédias continuarão. Mas se tivermos coragem – a coragem de enfrentar interesses instalados, de mudar sistemas de incentivos, de investir a sério na prevenção e no restauro das nossas paisagens – podemos transformar Portugal num país onde o fogo deixa de ser inevitável e volta a ser exceção.

A escolha está nas nossas mãos. E o tempo para decidir está a acabar.