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José Pascoal – Poeta Clássico em Tempos Modernos

O poeta José Pascoal – nascido em 23 julho de 1953 – é natural de Cambelas de Baixo (Torres Vedras). Concluiu o 1º ciclo na Escola Primária de Queluz e o ensino secundário no Liceu Passos Manuel, em Lisboa. Licenciou-se pela Faculdade de Direito na Universidade de Lisboa, onde foi professor assistente em 1976-85 e, posteriormente, exerceu funções de jurista no Ministério de Educação, entre 1986 e 2010.
Embora J. Pascoal tenha residido em Queluz e, mais tarde, em Lisboa, regressava com regularidade à sua terra natal, onde a família materna possui uma propriedade, da qual sempre cuidou com atenção e desvelo.

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José Pascoal
José Pascoal

Desde os 17 anos que se dedicou à Poesia, tendo publicação esparsa em vários órgãos da imprensa, jornais e revistas. No início, enviou poemas para jornais, como outros jovens o fizeram, no seu caso particular para o República (Suplemento), onde alguns dos seus escritos chegaram a ser censurados. Publicou, mais tarde, poemas originais em revistas da especialidade, entre outras, “Nervo”, “Ideias”, “7faces”, “Triplov” e “InComunidade”.

Edita o livro primacial Sob O Título (1986) na Assírio & Alvim, após ser selecionado por um júri composto por Fiama P. Brandão, J. Agostinho Baptista e Miguel S. Pereira. No entanto, mais tarde, no projeto que envolveu a Editorial Minerva, em 2017-18, publica uma quadrilogia poética que reúne todos os seus escritos, desde 1972 até 2017, a saber: Sob Este Título (reedição), Antídotos, Excertos Incertos, Ponto Infinito. E, mais recente, Branza (2019). Para este artigo, cingimo-nos apenas ao livro, Sob Este Título.

José Pascoal, homem culto e generoso ainda teve tempo para dar atenção à obra poética de outros, editando no seu blogue “Gazeta de Poesia Inédita”, entre 2018 e 2021, um poema original em língua portuguesa todos os dias, que solicitava quer a autores consagrados ou a ilustres desconhecidos.

 

O Poeta e os Outros Poetas

José Pascoal é um conhecedor profundo do cânone da Poesia, recorre por isso, num jogo intertextual, a versos e temas celebrizados por outros poetas seus antecessores. Logo na abertura da obra, Sob Este Título, o dístico «Ao Leitor» evoca um verso de Charles Baudelaire, «Hypocrite lecteur, – mon semblable, – mon frère», contrariando, no entanto, a provocação do “poeta maldito”: «Não vou chamar-te hipócrita, / Meu semelhante, meu irmão.» (p.7)

O título «Heteropsicografia» (p. 45) parece inspirar-se na «Autopsicografia», de F. Pessoa, mas com cambiantes distintas: «O poeta é um fingidor/ chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente» – entenda-se aqui o verbo “fingir” do étimo latino “fingere”, do qual deriva ficcionar. José Pascoal ‘ficciona’ ou entende a poesia a seu modo: «Assim, sitiado pelo medo/ De não saber escrever, / Guardo-me neste segredo/ Que é dizer sem dizer»; e noutro terceto «Há como que uma dor que não se sente, / Que não é amor, que não é ódio, / Que nunca chegaremos a saber donde veio.» (p.85)

Camões, ou melhor, resquícios de versos camonianos surgem nos poemas de J. Pascoal, como por exemplo: «Na triste madrugada da partida» (p.71) evocam «Aquela leda e triste madrugada»; noutro poema recorre à citação, «Se amor é fogo que arde sem se ter» (p.90), tendo por mote o soneto de Camões, «Amor é fogo que arde sem se ver».

J. Pascoal recorre também a determinadas temáticas, entre outras, o seu nascimento e a efemeridade do tempo. Tal como os poetas românticos, o nascimento deu-se sob o signo da fatalidade: «Nasci numa aldeia à beira-mar./ as falésias elevam-se a 53m. / A praia é um poço de caranguejos/ E cargueiros naufragados» (p.96). E quanto à efemeridade do tempo: «O tempo foge, / O tempo não ajuda, O tempo tem poucas maneiras. Ó tempos, ó costumes, / O tempo das vindimas já passou! (p.130). Repare-se no vocativo: «ó tempos, ó costumes» que traduz a locução latina «O tempore, o mores» de Cícero, invetivando os contemporâneos pelos costumes desregrados.

Na poesia de José Pascoal nota-se uma certa influência de Eugénio de Andrade, ou até mais subliminar a de Sebastião da Gama, quer a nível lexical, quer a nível temático, ou seja, um dizer poético com recurso a vocábulos simples, versos e poemas curtos, uma contenção verbal que expressa o equilíbrio entre racionalidade e emoção.

 

Uma Poesia Clássica e Singular

O poeta J. Pascoal, além do verso livre e branco, sem rima, cultiva o género poético mais perfeito, isto é, o soneto. Sá de Miranda (séc. XVI) trouxe o modelo de Itália, mas foi com Camões que se atingiu o expoente máximo. Os Parnasianos recuperaram, mais tarde, esse género clássico. Todavia Antero de Quental é considerado, por excelência, um dos maiores cultores da forma poética.

Inúmeros sonetos povoam as páginas dos livros de J. Pascoal. Eis um exemplo:

 

Oração de Sapiência

 

Sei de terras distantes e doentes,

De lugares constantes e formosos,

De sítios consagrados e famosos,

De pontos de chegada diferentes.

 

Sei de noites cantantes e contentes,

De dias sossegados e sedosos,

De momentos amenos e numerosos,

De pontos de partida contingentes.

 

Sei de nomes e rostos que conheço,

E daqueles, também, que desconheço,

E tudo tem fim no seu começo.

 

Sei que nada se sabe, nada sei,

Nada fui, nada sou, nada serei,

Do nada vim, em nada me farei.

(SET, p.34)

 

Todas as estrofes do poema são iniciadas pela 1ª pessoa do verbo saber («Sei»), a anáfora ou repetição pretende reafirmar a «sapiência», ou seja, o vasto conhecimento do eu-poético, através da experiência, quer no espaço geográfico ou no âmbito social. Isto está patente na enumeração «terras», «lugares», assim como «dias», «noites», «nomes», «rostos», etc. A eufonia do poema consegue-se pela sua toada, como uma prece ciciada, repetindo até ao final os sons sibilantes [s], como por exemplo nos versos da 2ª quadra «Sei das noites cantantes e contentes/ De dias sossegados e sedosos». Repare-se na antítese “noites alegres”, “dias tranquilos” revelando a vida instável, mas feliz do eu-poético.  No entanto, toda essa aparente felicidade se desmorona no último terceto, pela asserção socrática (Só sei que nada sei), deste modo: «Sei que nada se sabe, nada sei».

Os restantes versos do terceto evocam Álvaro de Campos, no início da «Tabacaria»: «Não sou nada. / Nunca serei nada/Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim/todos os sonhos do mundo.»

Veja-se o final do soneto de José Pascoal onde o pessimismo, ao contrário do entusiasmo de A. de Campos, está latente: «Nada fui, nada sou, nada serei, / Do nada vim, em nada me farei». Implícito está o versículo, «porque és pó, em pó te tornarás». (Genesis, 3: 5)

 

Conclusão

Para redigir o presente texto, tive a preciosa indicação de outro poeta de Torres Vedras, que me falara em tempos de José Pascoal, porque há alguns anos tinha enviado para o blogue “Gazeta de Poesia Inédita” três sonetos da sua lavra. Em seguida, fui à Biblioteca Municipal requisitar os respetivos livros do autor. Lá estavam, com surpresa minha, os cinco. Três deles com dedicatória à «Biblioteca», desenhada numa letra miudinha, com assinatura do próprio punho do Poeta. Ao ler os livros, tomei conhecimento da sua poesia clarividente, fluída, que se tornou numa inesperada revelação. E senti o desejo natural de chegar à fala com o Autor. Isso até não seria difícil, pois atualmente para o bem e para o mal, as novas tecnologias facilitam contactos, como sabemos. O apelido «Pascoal» era, curiosamente, o mesmo de uma professora, ex-colega, com quem me cruzei há anos, na Secundária de Queluz. O palpite acabou por bater certo. Era afinal a única irmã do Poeta. Porém, as notícias não foram as melhores. Infelizmente, o poeta José Pascoal, homem culto, discreto e generoso, tinha falecido em 30 de abril de 2021, no IPO de Lisboa, aos 67 anos. Interrompera, de repente, no dia 13 de abril desse ano as publicações no seu blogue “Gazeta De Poesia Inédita”, que mantivera «durante 1044 noites». Aos inúmeros seguidores, dirigiu a mensagem: «Um obrigado universal».

Porventura não seria de todo despiciendo, que a Câmara Municipal de Torres Vedras se dignasse homenagear esta personalidade torriense e das letras lusas, atribuindo uma placa toponímica com o seu nome, a uma rua ou praça de Cambelas, freguesia de S. Pedro da Cadeira, sua terra natal.

Rui Filipe Hilário

(Mestre em Estudos Portugueses)