JOAQUIM GOMES: «A escravatura – vergonha da Humanidade»
Ao ler o Jornal Badaladas da edição de 7 de março de 2025, página 21, um artigo do Sr. João Flores Cunha, ilustre colaborador do Badaladas, despertou-me a memória do tema da escravatura, que há muito me anda habitando o pensamento e que resolvi agora passar para o papel.

O tema não é fácil, é deveras constrangedor e indecente, por isso, ninguém ousa pegar nele.
A História é aquilo que é, boa ou má, não a devemos omitir, se não a soubermos ela tem a tendência em repetir-se.
A escravatura envergonha qualquer ser humano de bom senso, mas do século XV ao XIX foi prática comum entre os homens sem escrúpulos e que recorriam a ela para enriquecimento próprio, entre eles a nossa monarquia, os nobres e outras instituições e também particulares. A escravatura foi um dos negócios mais rentáveis do mundo e também uma das maiores tragédias humanas.
Atualmente nenhum país admite mais a escravidão como nos moldes antigos, em que os seres humanos eram comprados ou vendidos como mera mercadoria.
A Europa só despertou para esta terrível e inaceitável imoralidade mesmo no final do século XVIII com o abolicionismo britânico.
Há uma década atrás (século XXI) ainda era oficialmente tolerada pela Mauritânia, em 2007, foi o último país a erradicar oficialmente a escravidão humana.
No século XX, os últimos a aboli-la foram a Etiópia em 1942, Marrocos em 1956 e a Arábia Saudita em 1962.
A escravatura vem desde os confins do tempo, como na Grácia antiga, no Egipto dos faraós, no Império Romano, nos domínios do Islão e na própria África antes da chegada dos portugueses.
Os portugueses têm a sua quota parte da responsabilidade na escravatura, durante um período de duzentos e cinquenta anos, entre o início das incursões e capturas de escravos na costa de África, em meados do século XV até fins do século XVII.
Em Portugal, tudo começou com o homem de chapéu de abas largas e botas de cano alto, até aos joelhos que, montado a cavalo supervisionava toda a operação. Foi o Infante D. Henrique, quinto filho do rei D. João I e irmão do regente do trono, D. Pedro.
Isto ao amanhecer do dia 8 de agosto de 1444, os moradores de Lagos (Algarve) foram despertados pela notícia de um acontecimento extraordinário, chegadas do mar, meia dúzia de caravelas estavam ancoradas no cais. Dos seus porões, começou a sair uma carga inusitada: duzentos e trinta e cinco homens, mulheres e crianças, todos escravos que ali seriam arrematados em leilão. O primeiro lote de quarenta e seis escravos, ficou reservado para o Infante D. Henrique. Os escravos vendidos em Lagos, haviam sido capturados na costa de África pelos capitães Gil Eanes e Lançarote, escudeiros e sócios de D. Henrique.
A notícia ficou registada porque havia no local uma testemunha com a missão de a descrever para a posteridade. Gomes Eanes de Azurara, filho de padre, cronista real, cavaleiro da Ordem de Cristo, guarda-mor dos arquivos da Torres do Tombo e biógrafo de D. Henrique. Este foi o primeiro registo oficial de um leilão de escravos africanos pelos portugueses, uma prática que se repetira milhares de vezes ao longo dos três séculos seguintes, envolvendo a compra e a venda de cerca de doze milhões e meio de cativos, capturados ou adquiridos em África e transportados em cerca de trinta e cinco mil navios negreiros que cruzaram o Atlântico em direção à Europa e a vários pontos da América.
“Em 1448, mil escravos africanos já haviam sido transportados por via marítima para Portugal. Parte deles era destinada às lavouras de açúcar nas ilhas Canárias e na ilha da Madeira. O restante era levado para o continente europeu e revendido para Espanha, Itália e outras regiões do Mediterrâneo. No total, cerca de cento e cinquenta mil cativos africanos foram capturados ou comprados na costa de África pelos portugueses entre 1450 e 1500.” ¹
Deste modo, a partir do leilão de 1444 em Lagos, o comércio de escravos ajudaria a financiar as chamadas viagens dos descobrimentos.
Um frade capuchino italiano, Giuseppe Monari que partiu de Luanda rumo à Baia em maio de 1720, num navio com setecentos e oitenta e nove cativos, dos quais oitenta morreram durante os trinta e seis dias de travessia, deixou o seguinte relato: “É impossível descrever os choros, a confusão, o fedor, a quantidade de piolhos que devoravam aqueles pobres negros. Naquele barco havia um pedaço de inferno. Mas, como os que estão no inferno não têm esperanças de saída, eu me contentaria dizendo que era a nau do purgatório.” ²
O frade jesuíta Jorge Benci reclama de outras formas de tortura aplicadas pelos senhores nos escravos, que incluíam enfiar tições de brasa incandescente na boca dos cativos e a aplicação do “lacre”, ou seja, cera derretida sobre as feridas:” pergunto eu agora, aos senhores do Brasil, se é castigo racionável queimar ou atanazar ( que tão ímpio e cruel é este género de castigo) com lacre aos servos; cortar-lhes as orelhas e os narizes; marcá-los nos peitos e ainda na cara; abrasar-lhes os beiços e a boca com tições ardentes”. ³
Os africanos eram marcados com ferro em brasa, recebiam sobre a pele quatro diferentes sinais: a identificação do comerciante responsável pelo seu envio ao litoral, em seguida, o selo da Coroa Portuguesa sobre o peito direito, a terceira marca em forma de cruz, indicava que o cativo já estava batizado, a última poderia ser feita sobre o peito ou nos braços, indicava o nome do traficante que estava a despachar a carga. Ao chegar ao Brasil, podia ainda receber uma quinta marca do seu novo dono, o fazendeiro, minerador ou senhor do engenho para o qual trabalharia até ao fim da vida. Os fugitivos contumazes teriam ainda um F maiúsculo gravado no rosto. Estas marcas eram executadas “por um funcionário do Governo conhecido como “marcador de negros” e supervisionado por outro chamado de “capitão das marcas”. ⁴
Na bula “Inter Coetera, de 13 de março de 1456 o Papa Calisto III acabava de tornar a igreja parceira em todos esses empreendimentos ao reservar para a Ordem de Cristo portuguesa a prerrogativa de administrar os assuntos da Santa Sé sobre as regiões conquistadas ou a serem conquistadas, incluindo a nomeação de bispos e padres seculares. O clero católico passava, dessa forma, a ser parte da burocracia estatal portuguesa. Ao longo dos quatro séculos seguintes, a posição da igreja a respeito da escravidão era dúbia, quando não favorável aos interesses dos donos de cativos. Só em 1888, às vésperas da assinatura da Lei Áurea brasileira, o papa Leão XIII condenou a prática de forma inequívoca.” ⁵
Em 1640 o valor da produção total de açúcar brasileiro foi o equivalente 17.790 quilos de ouro.
“Portugal vivia nessa época um esplendoroso, porém efêmero, surto de prosperidade, alimentado pelo descobrimento de ouro e diamantes no Brasil, a maior e mais rica colónia escravista do mundo. Entre 1700 e 1750, o Brasil respondeu sozinho pela metade da produção mundial de ouro. Um dos primeiros grandes carregamentos atracou em Lisboa, em 1699, levando meia tonelada de minério. A quantidade foi aumentando até bater em vinte e cinco toneladas em 1720. No total, estima-se entre 800 e 1000 toneladas total de ouro garimpado em Ninas Gerais, Baía, Goiás e Mato Grosso de 1697 até 1810. Só de Minas Gerais foram despachadas para Portugal cerca de 535 toneladas entre 1695 e 1817”. ⁶
“O luxo e as excentricidades da corte portuguesa sustentavam-se no trabalho escravo no Brasil. Tudo dependia do sangue e do suor africano. Além de rico e extravagante, D. João V foi também um soberano aventureiro e libertino, famoso pelas suas relações extraconjugais.
O trabalho escravo e a riqueza do ouro e dos diamantes alimentaram a vaidade e a futilidade do reino de Portugal, mas não plantaram alicerces de riqueza e prosperidade. Foi tudo uma ilusão passageira. O rei português também se comportou como se a riqueza jamais tivesse fim e gostou mais do que podia. Como resultado da irresponsável gastança na segunda metade do século XVIII passada a voragem, Portugal estava novamente falido e endividado, tanto ou mais do que na fase anterior à descoberta de ouro e diamantes”. ⁷
“A humanidade divide-se em duas: os senhores e os escravos; aqueles que têm o direito de mando e os que nasceram para obedecer”, Aristóteles, filósofo grego (também era senhor de escravos).
“Sem Angola não há negros; e, sem negros, não há Pernambuco”, Padre António Vieira, 1648.
“O meu avô temia e devia; o meu pai devia; eu não devo nem temo”, D. João V, rei de Portugal.
¹ a ⁷ Gomes, Laurentino; “Escravidão”, Porto Editora.