J. JORGE CARVALHAL: «As invasões francesas, as linhas de Torres e os seus efeitos locais»
Como é sabido, as invasões francesas tiveram lugar entre 1807 e 1810. A primeira invasão, comandada pelo general Junot, ocorreu em novembro de 1807, a segunda, comandada pelo general Soult (o maneta) deu-se em março de 1809, e a terceira, comandada pelo general Massena, teve lugar em junho de 1810.

A invasão do território português pelo exército francês, teve uma importância decisiva no desenvolvimento de todo o século XIX em Portugal. Essa invasão deu-se porque Portugal se recusou a aderir ao Bloqueio Continental europeu que Napoleão quis impor à Inglaterra.
Foi ela que acabou por desencadear a cadeia de acontecimentos que marcaram a vida portuguesa ao longo do século: primeiro, o pedido de auxílio à nossa velha aliada Inglaterra e a consequente saída da corte para o Brasil, com o seu posterior e atribulado regresso e, por fim, a revolução liberal de 1820 e a guerra civil que se lhe seguiu, a qual durou até meados do século.
A revolução liberal de 1820 teve como propósito maior levar Portugal a aderir aos princípios revolucionários proclamados pela revolução francesa de 1789, os quais se propagaram depois a toda a Europa. Em síntese, o que se pretendia era substituir a monarquia absoluta que até então vigorava entre nós por uma monarquia constitucional, em que o poder monárquico passava a estar vinculado a uma constituição aprovada pelas Cortes.
Porém, como é frequente acontecer entre nós, as forças políticas que então terçavam armas não foram capazes de se entender minimamente para chegarem a essa síntese. Daí que a nossa primeira Constituição, aprovada em 23 de setembro de 1822, viesse a ter uma vigência efémera, de menos de 1 ano, tendo vindo mais tarde a ser substituída pela Carta Constitucional de 1826.
Foi de resto à volta da questão constitucional que se desencadeou e veio a desenvolver a guerra civil, que se manteve até começos da segunda metade do século XIX. Entretanto, com a entrada em vigor do Ato Adicional de 1852, que alterou a Carta Constitucional de 1826, inicia-se um novo período da vida portuguesa, de relativa estabilidade, por isso chamado de regeneração.
Concretamente, no que se refere a Torres Vedras, as invasões e a guerra que se lhe seguiu, primeiro contra os franceses e depois entre fações nacionais, teve enorme impacto, não só sobre a vila, como sobre todo o concelho. Para se compreender melhor a dimensão desse impacto, convém recuar à própria história das linhas de Torres.
Estas linhas, construídas para defender Lisboa da terceira invasão, comandada por Massena, procuraram garantir ao mesmo tempo a segurança do exército inglês, que aqui permanecia, sob as ordens de Wellington, e para isso lhe davam comunicação com o mar.
A primeira linha começava por alturas de Alhandra, seguia por trás de Arruda dos Vinhos até ao Sobral de Monte Agraço, cortava pelo monte do Furadouro até à serra da Mugideira e ia terminar na foz do Sisandro.
A segunda começava no alto do Quintela, nas costas de Alverca, seguia pelo Cabeço de Montachique para os altos do Gradil e da Murgeira e fechava ao norte da Ericeira, na foz do S. Lourenço.
A terceira, cuja finalidade era também, como se disse, cobrir, em caso de necessidade, nomeadamente, o embarque do exército inglês, defendia em especial Oeiras e Paço d’Arcos.
As duas primeiras linhas, compreendiam 126 redutos e estavam armadas com 297 peças de artilharia.
Sobre a vila de Torres Vedras, havia no monte de S. Vicente, que se contrapõe ao do Castelo, um forte que tomou aquele nome e constava de três redutos, comunicando entre si por pontes levadiças, mas separadas por fossos profundos.
Nas duas primeiras linhas, os abatises ou trincheiras tinham sido formados por enormes carvalhos e castanheiros, arrancados da terra com as próprias raízes, através de um esforço verdadeiramente hercúleo.
Entrelaçados uns nos outros, pareciam obra de gigantes ou de povos primitivos, e não havia recursos humanos capazes de removê-los em tempo apertado. Estas paliçadas de troncos e ramarias, como se não fossem por si obstáculo insuperável, eram ainda precedidos, de distância a distância, por obras de cintura, que lhes aumentavam as condições naturais de defesa, de modo raras vezes visto.
Os picos denteados dos montes, na extensão de mais de uma légua, tinham sido ligados intimamente por uma grande obra de terra, que em alguns pontos formava muralha de grande altura, no interior da qual corria em toda a extensão a respetiva banqueta, para fogo de fuzilaria.
Massena ficou assombrado diante desta defesa colossal, que lhe tomou o passo. Os sessenta mil franceses que trouxera até Torres Vedras, não chegavam para forçar a passagem. Por isso, esperava o reforço trazido por Soult, mas Soult não aparecia.
Pedia um exército suplementar a Napoleão, e não o recebia, porque o Imperador precisava de reunir forças na Alemanha. Quis atravessar o Tejo, ainda que com o perigo de dividir o exército, mas os barqueiros da Chamusca queimaram os barcos para não lhes dar passagem.
Finalmente, Massena teve de desanimar e retroceder. Contudo, poderia não ser assim se o marechal Soult tivesse invadido o Alentejo, como Napoleão lhe recomendara, e viesse atacar Lisboa pelo lado do sul.
Mas o que sucedeu, por felicidade nossa, foi que tivemos a glória de ver esbarrar as orgulhosas águias napoleónicas, já vexadas no Buçaco, de encontro às formidáveis linhas de Torres, quebrando contra elas o impulso das asas e do orgulho gaulês.
Daqui o exército francês retirará pela Estremadura para a Beira, e da Beira para Espanha, sempre com a mesma infelicidade de resultado, ainda que com alguns atos brilhantes de valor de permeio, como o do general Brenier em Almeida.
Todavia, o país ficava devastado e empobrecido, e a província da Estremadura, onde se incluía o território do concelho de Torres Vedras, era das regiões mais prejudicadas pela terceira invasão francesa.
Não é possível aqui abordar em toda a sua extensão os diferentes episódios da guerra civil que assolou o país imediatamente antes e depois da revolução liberal de 1820. Limitamo-nos a uma breve referência a alguns dos episódios militares dos conflitos constitucionais que tiveram mais direta repercussão em Torres Vedras.
A “revolução de setembro” de 1836 resultou da disputa entre as duas fações liberais. Uma mais radical, adepta do regime da Constituição de 1822, posteriormente substituída pela Constituição de 1838, (setembrista); outra, mais moderada, adepta do regime da Carta Constitucional de 1826 (cartista). Teve como consequência imediata o derrube do governo liberal-cartista, em funções, e a sua substituição por um novo governo, setembrista, chefiado por Passos Manuel.
Mas a disputa não ficou por aí. Nas “lutas caseiras” que se seguiram à “revolução de setembro” de 1836, lutas essas que ainda se prolongaram por mais quinze anos, Torres Vedras acabou por ter um papel importante enquanto teatro de operações.
Foi aqui que em 1837, por ocasião da “revolta dos marechais”, Saldanha e Terceira, com Mouzinho de Albuquerque, formaram uma regência provisória, a qual a sorte das armas veio a malograr.
Foi aqui que a 22 de dezembro de 1846 se feriu, numa notável batalha, entre as tropas do marechal Saldanha, mantenedor do golpe de estado tramado no paço em 6 de outubro, e as do conde Bonfim, intérprete da agitação revolucionária, que desde a “Maria da Fonte” se espalhou no país e que, tendo partido do povo, acabou por arrastar para a luta setembristas e miguelistas.
O conde de Bonfim havia-se entrincheirado em Torres Vedras, certamente confiante na posição mais forte que as famosas linhas, verdadeiramente inexpugnáveis, como acabamos de ver, lhe proporcionavam.
Pois, não obstante, Saldanha, tomou os fortes e as pontes e conseguiu levar a sua artilharia até às portas do castelo, o que obrigou o conde Bonfim a render-se, ficando prisioneira quase toda a sua divisão, mas sendo-lhe reconhecidas pelo vencedor as honras da guerra.
Nesse mesmo dia, o duque de Saldanha dizia em carta a sua mulher: “Não recebas parabéns, dá graças a Deus, porque tais feitos, como os de hoje, são superiores às forças dos homens, só a mão do Omnipresente os pôde executar”.
As perdas, entre mortos, feridos e prisioneiros, foram grandes de parte a parte: Saldanha perdeu 386 homens e 47 cavalos; Bonfim, 250 cavalos e 600 prisioneiros. “Este desastre – dizia depois Manuel Passos – não abala a coragem dos defensores da liberdade”.
Não só entre nós, como noutras paragens, a liberdade custou demasiadas vezes sangrentos combates, pois uns queriam-na de mais e outros de menos; e depois, quando finalmente nos contentamos com a que temos, começamos de novo a pô-la em causa.
Porém, na sequência da insurreição militar de 1851, liderada pelo Duque de Saldanha, que provocou a queda do governo de Costa Cabral, inicia-se, a partir de então, um período de alguma estabilidade na vida política portuguesa, que se traduziu pela procura de soluções de consenso ao centro, o que permitiu superar as divisões políticas até então existentes.
Antes, porém, de abandonar a agitação típica da vida do país ao longo da primeira metade do século XIX, não pode deixar de se fazer uma referência a um caso de âmbito estritamente local, ainda que este tenha ocorrido já na segunda metade do século: o chamado caso da Batalhôa.
O que vem a ser isso? Uma revolta popular que rebentou em Torres Vedras a 9 de fevereiro de 1868. Iniciada pelo povo das aldeias, que, na manhã daquele dia, se dirigiu em tropel para a Vila, onde queimou todos os papéis da repartição da fazenda pública, como protesto pelo excesso das contribuições e pela a severidade dos respetivos funcionários.
Uma verdadeira bernarda!...
Reconheça-se, no entanto, que este caso assume já um carácter popular, mais próximo das lutas típicas da segunda metade do século, do que das lutas ideológico-políticas que se travaram entre liberais e miguelistas na primeira metade.
Do notável passado de Torres Vedras restam hoje alguns monumentos, algumas antigas quintas e as suas casas e as páginas da história que chegaram até nós. Como normalmente acontece quando não existe uma grande preocupação em preservar a memória do que nos antecedeu, o presente acaba por tudo absorver.
Possivelmente, a grande destruição do edificado provocada também aqui pelo terramoto de 1755, contribuiu significativamente para essa perda de memória.
Entretanto, Torres Vedras, tal como o país em geral, apesar da devastação sofrida durante as invasões francesas e depois durante as lutas intestinas do liberalismo, ainda que não tenha conseguido regressar ao brilhantismo e à relevância do passado, retoma a vida e moderniza-se.
Compreende depressa a vida prática dos novos tempos, dando início a algumas pequenas indústrias e transformando-se, a partir do último quartel do século XIX, num importante centro vinhateiro.
Se é certo que no final do século XIX já não se veem rolar pelas suas ruas, como outrora, os coches dos Alarcão, dos Perestrelo ou dos Telles da Silva, ouvem-se agora rolar os cascos das pipas destinadas a recolher o vinho que irá fornecer as tabernas de Lisboa, o ruído do trabalho do tanoeiro e o pregão dos vendedores dos novos produtos que alimentam a vida moderna.
A linha férrea do Oeste contribuiu poderosamente para esta vitalidade económica. Uma estação serve a vila, à qual está ligada pela nova Avenida Ignacio Casal Ribeiro, onde, quando se desembarca, se encontra logo à mão o Hotel Avenida, cuja diária é de 800 a 1000 réis, sendo gratuito o transporte dos hóspedes da estação para as termas dos Cucos.
Outros nomes, vieram modernizar a designação das ruas, a saber: Serpa Pinto, Mouzinho de Albuquerque (antiga Corredora), Dias Neiva (proprietário do estabelecimento dos Cucos), Santos Bernardes (proprietário da Fonte Nova), Paiva de Andrada, etc.
Se das ruas se passar para outras inovações, há também aqui muito que registar. O espírito humanitário e associativo que então começa a despontar, desenvolvido tanto pela iniciativa individual como pelo impulso das coletividades que começam a surgir, tem em Torres Vedras, desde cedo, sólidas raízes.
Basta mencionar algumas dessas iniciativas, parte delas tendo perdurado até hoje, ainda que tenham sido adaptadas a necessidades atuais. O antigo Asilo de S. José, então destinado aos inválidos do concelho e hoje transformado no Lar de S. José. O Santo António dos Pobres, uma instituição de benemerência, amparada pelas esmolas dos devotos daquele santo e dirigida por uma comissão de irmãos da Ordem Terceira do Varatojo, que tinha por fim socorrer a pobreza. A associação de socorros mútuos, denominada 24 de julho de 1884.
O princípio associativo, de início especialmente dirigido à assistência aos desvalidos, depressa passou também a servir para a defesa dos interesses económicos locais, no caso, dos interesses agrícolas.
Neste âmbito, fundou-se cedo no concelho uma cooperativa, inicialmente com o título Liga Agrícola da Região de Torres Vedras.
O mesmo princípio associativo também produziu bons resultados no domínio das atividades recreativas. Daí resultaram, o Casino de Torres Vedras, o Grémio Artístico Comercial, a Sociedade Anónima Empresária do Teatro, a Filarmónica Torriense e a Fanfarra União Torriense.
Mas também no que respeita à educação, então ainda designada como instrução, são notáveis as iniciativas e o esforço desde cedo desenvolvidos em Torres Vedras neste domínio.
Nesse âmbito, devem mencionar-se as escolas oficiais de instrução primária, a escola de fomento agrícola, as escolas e colégios particulares, incluindo a do Convento do Varatojo e a do Barro e ainda uma escola secundária, de iniciativa municipal.
No que se refere à imprensa, Torres Vedras nada fica a dever ao que se passa noutras paragens.
Em 1908, publicavam-se no concelho dois periódicos: A Vinha de Torres Vedras, fundado em 1883; e a Folha de Torres Vedras, que apareceu em 1899, teve uma interrupção e reapareceu em 1902.
Mas houve mais: o Jornal de Torres Vedras (1885); A Semana (1886); A Voz de Torres Vedras (1887); A Gazeta de Torres Vedras (1893). Não era então normal surgir um tão grande número de iniciativas neste domínio.
No que se refere à atividade comercial em geral, havia também já nessa altura na Vila, para além do comércio em praticamente todos os ramos da sua atividade, agências bancárias, agência de seguros, de incêndios e de outros ramos, incluindo seguros de vida, estação de correios e de recolha de publicações e de anúncios.
Além do tráfico permanente nos estabelecimentos da Vila, faziam-se já então três grandes feiras em Torres Vedras: a Feira de S. Vicente, a 22 de janeiro (gado suíno); a de S. Pedro, a 29 de junho; e a Feira Nova, no 3.º domingo de agosto.
A concluir, quase se pode dizer que existiam então em Torres Vedras mais lojas e mais comércio do que nos dias de hoje…
J. Jorge Carvalhal (Jurista)
Bibliografia:
- Texto de Alberto Pimentel, publicado no Portugal Pitoresco e Ilustrado, sobre o concelho de Torres Vedras, 1908
- Descrição Histórica e Económica da Vila e Termo de Torres Vedras, por Manuel Agostinho Madeira Torres, impressa no tomo 6.º, parte 1.ª, das Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa, 1819, 2.ª edição
- Torres Vedras Antiga e Moderna, de Júlio Vieira, edição de 1926