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A Censura na Banda Desenhada e no Cartoon (breves apontamentos)

Um caso recente: alguém coloca um post no facebook reproduzindo um cartoon da autoria de Vasco Gargalo, cartoonista português reconhecido, colaborador do jornal Correio da Manhã e da revista Sábado, participante activo no site Cartoon Movement. O cartoon, publicado na página do Facebook desse artista, caricatura o primeiro ministro israelita, criminoso de guerra, Benjamin Netanyahu, vestido com uma farda de nazi, retirando uma máscara com o rosto de Hitler. Pouco tempo depois o post é censurado pelo facebook com o seguinte argumento: “É possível que a publicação contenha símbolos, glorificações ou apoio a pessoas e organizações que consideramos perigosas” e porque “Isto desrespeita os nossos Padrões da Comunidade relativos a pessoas e organizações perigosas”.

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Imagem ilustrativa: A Censura na Banda Desenhada e no Cartoon (breves apontamentos)

Num pedido de esclarecimento àquela mesma plataforma confirma o acto de censura porque “Não permitimos que as pessoas partilhem ou enviem símbolos, glorificações ou apoio a pessoas e organizações que consideramos perigosas. Exemplos de coisas que não permitimos: Glorificar um ataque terrorista; Apoiar a violência contra um grupo de pessoas específico; Apoiar ou promover atividades criminais prejudiciais, tais como tráfico de pessoas". Aquele post não voltou a ser reposto, mesmo quando o responsável desse post, ao repetir a reprodução mais tarde, apelando aos seus seguidores para reproduzirem o referido cartoon antes que ele fosse novamente censurado, situação que se voltou a repetir, conseguiu, desta vez, depois de voltar a protestar pelo acto de censura, que o cartoon fosse reposto. Desta vez o facebook, contradizendo a justificação anterior, reconheceu, ao restaurar a publicação do cartoon, que  “Chegámos à conclusão de que a nossa equipa de revisão cometeu um erro ao remover a tua foto. Agradecemos o tempo que dispensaste a pedir uma revisão e a ajudar-nos a melhorar os nossos sistemas. A nossa prioridade é manter a segurança e o respeito na comunidade. Por isso, às vezes temos de tomar precauções".

Tal mudança de atitude só pode ser explicada por uma ou várias das seguintes razões:

- o  apelo para reproduzir e partilhar o cartoon, antes de voltar a ser censurado foi seguido por muitos outros subscritores do facebook, aumentando a visibilidade desse acto de censura;

-  o censor que estava de serviço a esta hora era outro, mais benevolente, do que aquele que censurou o cartoon da primeira vez.

Contudo, o primeiro post não foi reposto, o mesmo acontecendo a algumas pessoas que partilharam esse cartoon, também alvos de censura, que não viram o seu post reposto.

Mas o mais grave desta situação, cada vez mais frequente nas redes sociais, foi o facto de, desta vez, estarmos perante censores sem rosto, usando critérios arbitrários e com a ajuda de uma nova e poderosa ferramenta, a chamada “inteligência artificial”.

Contudo, Vasco Gargalo não é o primeiro cartoonista português censurado pelo longo braço do poder de Netanyahu. Uma outra caricaturas onde ele aparecia, como “cãozinho de trela” de Trump, da autoria do conhecido caricaturista António Antunes, publicada primeiro no jornal Expresso e reproduzida nas páginas do New York Times em junho de 2019, também foi alvo de violentos protestos israelitas contra este jornal que, cedendo às ameaças de “antissemitismo”, apresentou um pedido de desculpas formais e, posteriormente, cobardemente e com medo de problemas futuros, abdicou de publicar cartoons nas suas páginas, vergando-se assim ao poder da censura.

Ao contrário do que se pode pensar, a censura não é um acto exclusivo de ditaduras ou regimes autoritários. Hoje, cada vez mais, escondendo-se no anonimato da “inteligência artificial” ou da “defesa do politicamente correcto”, a censura ganha força e dinâmica.

Num estudo sobre a censura no século XXI, aplicada ao cartoon, à banda desenhada e ao mundo da imagem (1) Yves Frémion aponta vários grupos de censores e tipos de censura, activos nos nossos dias: ditaduras e regimes autoritários, os “fascislamitas”, autoridades religiosas, as feministas reacionárias, os GAFA [Google, Apple, Facebook e Amazon], os chefes de estado ofendidos (incluindo muitos “democratas”), instâncias, administrações e organizações oficiais, agencias de publicidade, vários difusores culturais [editoras, produtoras, livrarias, bibliotecas, museus, galerias, salões e festivais], o politicamente correcto, as imagens de marcas, o puritanismo ideológico ou religioso, ou a “simples” estupidez. É assim que esse autor conclui que este século é o século de todo o tipo de censura.

Portugal não tem escapado ao fenómeno, embora a democracia, instituída em 25 de Abril, se tenha mostrado mais tolerante, talvez porque a censura, pura e dura, sendo um dos pilares em que assentava o regime do Estado Novo então derrubado, seja muito pouco aceita pela maior parte da população e dos públicos consumidores de comunicação social e de cultura, os meios onde os actos de censura mais se costumam manifestar.

Historicamente a censura foi praticada sobre cartoonistas e edições de banda desenhada por quase todos os regimes em Portugal, nos últimos cento e cinquenta anos, da monarquia constitucional, à República, com especial incidência no Estado Novo, incindindo mais no cartoon, com uma longa tradição na imprensa portuguesa, do que na BD.

Na BD, o que assistimos com mais frequência foi à autocensura, tanto porque durante décadas a 9ª arte foi considerada coisa de crianças e jovens, logo inócua, quer porque um dos responsáveis pela edição das primeiras revistas portuguesas de BD, geralmente dirigidas a um público infanto-juvenil, até meados dos anos 1960, foi Adolfo Simões Müller (1909 - 1989), um dos rostos conhecidos da Comissão de Censura do Estado Novo, conhecedor em primeira mão dos limites dessas edições.

Entre os actos de censura mais conhecidos e citados foi o caso da primeira edição em Portugal de TinTin, na sua aventura nos Estados Unidos [Tintin na América], aventura publicada por Hergé em 1932 no “Le Petit Vingtiéme” e que em Portugal começou a ser editada na revista “Papagaio” em 16 de Abril de 1936, situação que se manifestou na alteração de uma legenda dessa aventura, publicada naquela revista:  uma cena, que no original é referida como uma greve de trabalhadores norte-americanos, foi traduzida na edição portuguesa como uma “paragem para o almoço”.

Seguindo também um hábito imposto pela censura, nessas primeiras aventuras de TinTin editadas no Papagaio foi o aportuguesamento dos nomes dos personagens.

TinTin foi designado como Tim-Tim, um repórter “português”, o cão Millou transformou-se, primeiro em Pom-Pom e, depois, na “cadela” Rom-Rom, para que o seu nome não fosse confundido com a cantora Milú, uma famosa cançonetista da rádio portuguesa.

O Capitão Haddock foi transformado no Capitão Rosa que, em vez de beber Whisky, passou a beber Vinho do Porto, o professor Tournesol foi baptizado como senhor Pintadinho de Branco e, mais tarde, professor Girassol.

Um dos casos mais estranhos foi transformar um dos poucos “portugueses” originais da série, o “vendedor ambulante” Oliveira da Figueira, que apareceu pela primeira vez na aventura “Os Charutos do Faraó” (1934), num espanhol de Málaga, fugido da Guerra de Espanha (altura em que essa aventura foi editada no ”O Papagaio”), talvez porque fosse considerado uma figura pouco abonatória do ideal do “português” propagandeado pelo Estado Novo.

A adaptação dos nomes originais de conhecidas personagens da BD por nomes portuguese foi um dos efeitos mais visíveis das recomendações da censura para a edição dessas publicações.

Um dos casos mais famosos foi o aportuguesamento de Battler Britton, as aventuras de um aviador inglês da 2ª Guerra, série criada em 7 de Janeiro de 1956, com desenhos de Geoff Campion e argumento de Mike Butterworth, publicada em Inglaterra até 1987 e que teve mais de 10 desenhadores a dar continuação à série, entre eles os consagrados Hugo Pratt e o argentino Dino Battaglia. Na publicação em Portugal, por imposição da censura nacionalista, o heroico aviador foi baptizado de Major Alvega, um “luso-britânico”, filho de “pai alentejano” e mãe inglesa.

Se até 1950 a publicação de cartoon´s e BD obedecia às regras gerais da censura, impostas pelo regime salazarista em vários decretos publicados desde os anos de 1930, nesse ano foram publicadas indicações precisas para as edições infantojuvenis, nas “Instruções sobre literatura infantil” editadas pela Direcção dos Serviços  de Censura.

Atendendo à falta de espaço para poder escalpelizar o conteúdo desse documentos, tudo o que aqui referimos pode ser consultado na exposição patente ao publico nos paços do concelho sobre a Censura na Banda Desenhada, uma das iniciativas do BD VEDRAS, aqui transcrevemos uma das frases mais significativas e que resume o espírito paternalista e nacionalista dessas instruções: “Parece desejável que as crianças portuguesas sejam cultivadas, não como cidadãos do mundo [sublinhado nosso], em preparação, mas como crianças portuguesas que mais tarde já não serão crianças, mas continuarão a ser portuguesas”.

Para além dos documentos expostos nessa exposição, o tema da censura e do efeito da inteligência artificial sobre a censura e a criatividade da 9ª arte vão ser tema de debate publico, amanhã, Sábado, na Biblioteca Municipal de Torres Vedras, pelas 17. 30, com a presença de  José Pacheco Pereira e Carlos Nuno (Ephemera), responsáveis pelas exposições sobre a censura organizadas por essa associação,  Álvaro Matos (historiador/arquivista), responsável pela Hemeroteca de Lisboa, autor de vários estudos sobre a censura na imprensa e no cartoon e  Rui Alves Sousa (jornalista Antena 1), responsável pelo programa “mortinhos por sair de casa” e “pranchas e balões”.

(1)   FRÉMION, YVES, Images Interdites – La Censure au XXIe Siécle,  ed. Gallimard, Paris, 2022.

Venerando Aspra de Matos